#032: Entre likes, lifting e lágrimas: o corpo da mulher como território de disputa
Mantenha as mulheres ocupadas com seus corpos e lucre com sua insegurança, diz o patriarcado.
Disclaimer: esse texto não é uma crítica às mulheres, mas ao patriarcado.
***
Nesta semana, me deparei com uma reportagem que dizia que o lifting facial era a nova modalidade de harmonização facial entre as famosas. Já faz alguns meses que vejo o nome de Anne Hathaway, Kelly Osbourne, Lindsay Lohan, Kris Jenner, Emma Stone sendo associadas a termos como “visual repaginado”, “menor idade”, “rejuvenescimento natural” e isso não parecia ser algo isolado. Até que juntei as reportagens e voilá: todas elas falavam em lifting.
Também conhecido como facelift, a técnica vem sendo muito aprimorada nos últimos anos, o que já era de se esperar: em uma sociedade mediada pelas selfies, o nosso rosto é a porta de entrada. Veja bem, a questão é que o procedimento é feito com incisões na região da linha do cabelo e ao redor das orelhas. Não é uma coisa boba. Ali, são reposicionados os tecidos faciais e removidos os excessos de pele, justamente para dar esse efeito no rosto. E o ~ melhor ~ é que você não precisa se preocupar com cicatrizes: você vai rejuvenescer sem provas e, logicamente, sem culpa. Você hackeou o próprio sistema.
O interesse por investigar as relações entre corpo, gênero e capitalismo vem me fazendo companhia como uma boa amiga ao longo dos últimos anos, tanto na minha trajetória acadêmica quanto pessoal. Meu mestrado teve como base os Estudos Feministas e, durante minha pesquisa, explorei as tensões entre maternidade, trabalho e mercado, refletindo sobre os impactos do neoliberalismo na experiência de ser mulher mãe trabalhadora. Fiz esse segundo pequeno disclaimer para que você entenda que, desde então, venho flertando — em um certo aprofundamento autônomo, se assim posso dizer — com o estudo das teorias feministas que tratam os efeitos do capitalismo sobre os corpos femininos. É um poço sem fundo.
Diversas teóricas feministas demonstraram como o capitalismo se articula ao patriarcado para controlar, explorar e normatizar os corpos das mulheres. Do feminismo materialista, Silvia Federici (sim, sou obcecada por essa mulher!) mostra como, desde a transição ao capitalismo, o corpo feminino foi disciplinado e apropriado como máquina reprodutiva; enquanto Angela Davis evidencia como o sistema escravocrata capitalista explorou os corpos das mulheres negras como força de trabalho e reprodutoras.
Ainda, no feminismo negro interseccional, bell hooks denuncia a tríade racismo–patriarcado–capitalismo como estruturante da opressão sobre os corpos negros femininos, defendendo o amor como prática da liberdade. Naomi Wolf (mesmo diante de tantas controvérsias), numa perspectiva mais contemporânea, analisa como a lógica neoliberal molda os corpos das mulheres por meio da disciplina estética, da obsessão por juventude e da medicalização. A questão é: todas essas teorias nos revelam que o corpo da mulher é um território disputado — econômica, simbólica e politicamente.
Falar sobre as conexões entre mulher, corpo e capitalismo é pano pra muita manga. As perspectivas, os pontos de vista, as vozes, como vocês viram, são múltiplas. Também são múltiplas as contradições e tensões: como explicar que o discurso sobre a liberdade de fazer o que quiser com seu próprio corpo convive com tantas pautas conservadoras sobre o controle dos nossos corpos, sobretudo pelo Estado e pela igreja? E não, não estamos falando do século XV.
Meu objetivo, com esse texto, não é esgotar o assunto das conexões entre corpo, mulher e capitalismo; mas trazer indagações, algumas ideias, alguns insights sobre como a indústria da beleza — e até mesmo do wellness, em alguns momentos, se pararmos para pensar — são responsáveis por criar tendências de comportamento e fazer com que acreditemos na nossa completa inadequação social no que diz respeito ao corpo e ao rosto padrão.
Uma pequena observação: parto do pré suposto de que as redes sociais, que antes serviam como meio de socialização superficial e de uma extensão da vida offline (ali no início dos anos 2000) agora ocupam a maior parte da vida de muitas pessoas. Elas deixaram de ser meio e passaram a ser o objetivo, a linha de chegada, o final. Estar ali é parte do viver, do se relacionar, do comunicar, do interagir. As redes criam tendências, moldam formas de pensar, propagam ideias, causam felicidade e causam sofrimento na mesma medida. Mas se nós, mulheres, observarmos nosso corpo como território de disputa no capitalismo mediado por essas redes, a coisa fica mais complexa. E eu vou tentar explicar aqui.
As redes sociais ampliam a disputa simbólica e material sobre o corpo feminino. De um lado, vemos a exposição constante dos corpos de mulheres, o estímulo à comparação, à vigilância e à autopoliciamento. O corpo vira produto monetizável, comparável, disponível.
Ao mesmo tempo que podem contribuir para o debate, as redes também reproduzem a lógica do capitalismo patriarcal: exigem perfeição estética, performance de feminilidade. A vigilância não vem só do Estado ou dos homens, mas também das próprias usuárias, umas sobre as outras. As comparações, mesmo que não intencionais, são estimuladas diariamente. O vácuo entre a consciência de si e o desejo de performar o que engaja é assustador.
Parto do pré suposto (completamente influenciada pelas teóricas que admiro) que o corpo, na nossa sociedade, cumpre um papel social. Dentro desse papel, somos observadas, avaliadas, medidas e escolhidas: seja para ocupar um lugar na famosa prateleira do amor de Valeska Zanello, seja na ideia de nos deixamos influenciar pela mulher padrão que performa uma vida padrão em um lifestyle padrão que vende e gera likes.
O corpo como função social também pode ser associado a um “cartão de visitas”, carimbando algum nível de competência, autoridade ou cuidado de si. Por exemplo, corpos considerados “em forma” são frequentemente interpretados como sinônimos de disciplina e sucesso — especialmente no ambiente corporativo. O contrário também vale: corpos fora do padrão podem ser associados à desleixo e fracasso, dependendo do contexto.
No Instagram, TikTok e afins, o corpo funciona a partir de uma curadoria de si mesmo: ele é editado, iluminado, filtrado, legendado, e “vendido” como parte de um estilo de vida. É por isso que corpos que aderem ao padrão têm mais visibilidade; outros, menos.
A questão é que o facelift me fez submergir nas profundezas do Google e encontrar dados assustadores sobre o mercado estético no país: saibam vocês que o Brasil é líder global nos procedimentos estéticos entre jovens, com um aumento expressivo nos últimos anos. A motivação é simples: insatisfação da imagem corporal, pressionada por redes sociais e padrões estéticos que obviamente são irreais.
Somente nos últimos dez anos, houve um aumento de 141% no número de procedimentos entre jovens de 13 a 18 anos, segundo a SBCP. Entre as cirurgias mais procuradas estão os implantes de silicone, a rinoplastia e a lipoaspiração.
Casos como os de Liz Macedo (15 anos), Soso Careca (17) e outras influenciadoras adolescentes que, desde muito jovens, começam a fazer procedimentos estéticos — como rinoplastia, silicone, harmonização e baby botox — é algo cada vez mais comum, podendo influenciar adolescentes da mesma idade a quererem as mesmas mudanças. A questão é que isso está acontecendo cada vez mais cedo.
Voltando para o gancho do controle sobre os corpos, minha curiosidade atiça quando penso que o corpo da mulher é continuamente regulado e vigiado: seja pela mídia, pelas condutas sociais, pela medicina, pelas instituições religiosas e pelo próprio mercado de consumo. Por esse motivo, se estamos cada vez mais conectados no grande vácuo do mundo virtual, a manifestação dessa regulação acaba ficando muito evidente, até mesmo com a ajuda dos algoritmos.
Li recentemente no livro “A Máquina do Caos”, de Max Fisher, com tradução de Érico Assis e publicado pela editora Todavia, que o que convence as pessoas é a repetição dos conteúdos, ainda que em um primeiro momento eles não sejam considerados como verdade. A recorrência, nesse caso, cria um padrão de consumo que interfere diretamente nas percepções das pessoas, fazendo-as acreditar na sua validade.
Quanto mais consumimos padrões de informação sobre determinados assuntos, mais familiaridade com o tema acabamos desenvolvendo. E aí acabamos fazendo atalhos mentais sobre o que aceitar e o que recusar: se uma afirmação parece uma coisa que antes tínhamos como verdade, provavelmente continua sendo verdade.
Um exemplo muito marcante são as lentes de contato, que passaram a reforçar um novo padrão de sorriso branco, sem imperfeições nos dentes. Desde o tom amarelado até as suas diferentes formas e contornos, cada vez mais, por repetição, enxergamos dentes naturais inadequados ou feios em comparação aos novos modelos de sorrisos brancos, uniformes e padronizados. Isso é efeito da repetição.
Tendo isso em mente, as redes sociais acabam ajudando a disseminar certos padrões de controle, o que também não é novidade para ninguém. A onda dos preenchimentos labiais também reforça isso. O que há alguns anos poderia ser visto como um procedimento invasivo passa a se naturalizar, já que todo mundo conhece alguém que fez. E a sua boca, que tem lábio fino, precisa de um hialurônico.
A influência desses padrões é vista como meio para atingir um determinado capital simbólico: a mulher é consumidora e produtora de si mesma; a estética é uma manifestação do self-marketing-lifestyle-aesthetic que interpela a todas nós, em níveis distintos.
Essa pressão subjetiva acaba fazendo com que, invariavelmente, a gente ache que a grama da vizinha está sempre mais verde que a nossa; e isso quer dizer:
1- Que as mulheres que trabalham com redes sociais são muito mais bem sucedidas que nós;
2- Que acordam sempre com uma aparência impecável;
5- Que estão sempre fazendo os melhores procedimentos;
6- Que têm total controle sobre seus corpos e suas emoções.
E por aí vai.
A onda da lipo HD foi um grande exemplo. O procedimento, também conhecido como como Lipoaspiração de Alta Definição, busca remover o excesso de gordura além de esculpir o contorno do corpo. Nesse caso, o cirurgião plástico trabalha para realçar os músculos naturais e criar um visual mais tonificado, como se você praticasse musculação ou crossfit desde que nasceu. Quem lembra lá pelos anos 2022 a onda de famosas fazendo lipo HD no Instagram?
Não digo aqui que estou condenando a liberdade de mulheres fazerem o que bem quiserem com seus próprios corpos. Mas o desejo, a vontade, não é totalmente nossa, não é intrínseca, infelizmente. Existe uma pressão social absurda, reforçada pelas redes sociais, para que isso aconteça e pra que a gente se sinta inadequada com nosso próprio corpo. E é aí que me vêm um novo gancho sobre esse assunto:
O capitalismo contemporâneo remodela o patriarcado, fazendo com que os corpos femininos sejam verdadeiros alvos de seu controle, consumo e violência. O problema é que, em muitos casos, a pressão para que mulheres se adaptem a padrões inatingíveis de comportamento e de aparência não é apenas simbólica, mas produz sofrimento real. Porque o projeto do corpo perfeito não acaba nunca.
Minha tentativa — que agora considero extremante falha e superficial — de escrever sobre isso, deixa de lado muitos pontos importantes. Eu poderia ter trazido exemplos melhores, talvez até mais recentes. Poderia falar sobre os casos X e Y de padrões de consumo, sobre os lifestyles que são desmentidos, dos procedimentos que repercutiram por não darem certo, sobre tantas coisas…
Reconheço que trago apenas alguns fios de um carretel muito maior — e muitas vezes invisível — que nos costura diariamente. Quando olhamos para o corpo da mulher como território de disputa, entendemos que o que está em jogo não é apenas a estética ou o comportamento, mas a própria possibilidade de existência fora das disciplinas “optatórias” impostas pelo patriarcado. Somos letradas em nos odiar.
Eu não desejo nunca negar a autonomia das mulheres ao pensar essas dinâmicas. Continuo defendendo sua emancipação e o direito para fazer o que quiser com seu corpo e com sua vida. Mexer com a auto estima é complexo, é muito pessoal; e é, ao mesmo tempo, muito subjetivo. Mas talvez eu queira problematizar muitos dos nossos desejos e pressões que nos sufocam. Sim, me incluo. Completamente. Indubitavelmente. E se, por vezes, nos sentimos falhas, insuficientes, improdutivas, desinteressantes ou fora do padrão, talvez seja importante lembrar que esse sistema foi desenhado para que a gente nunca se sinta suficiente, mesmo.
Na guerra contra o patriarcado, nossos corpos são o maior território de disputa. Mas nosso corpo é nosso.
O corpo é político, como demonstram de forma impressionante as obras da artista Annegret Soltau.
O canal do Youtube da Carol Pires
A maravilhosa Vera Holtz, em sua peça: Ficções
A edição da news de
A edição da news de
Até a próxima, pessoal! :)
Me fez pensar no caso da Anitta, que já teve 5 rostos diferentes via procedimentos estéticos, e levava suas fotos com filtros de instagram aos médicos e falava: me deixe assim. É assustador.
e por mais que a gente defenda que a mulher faça o que quiser com seu próprio corpo, é muito dificil ver o quanto que o padrão do que é belo é imposto e é social, é construído...